segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Natal de um ateu hipócrita

Odeio o Natal, foi assim que me deu por iniciar este texto, mas não é verdade não odeio o Natal, embora não morra de amores por ele também. Vejamos se me explico melhor…

Sou ateu, e assumo-me hipócrita, hipocrisia esta que fica mais patente nesta época do ano. Nesta altura vejo-me um poli-hipócrita … um pequeno aparte fiquei admirado que o corrector ortográfico tivesse reconhecido a palavra … damn it … eu aqui a imaginar-me tal Mia Couto um inventor de Português.

Voltando ao texto, a primeira e maior hipocrisia é ser ateu e não odiar o Natal. Falo mal do consumismo mas comprei umas prendinhas, para os mais chegados apenas, a verdade é que gosto de todo o ritual em volta desta quadra festiva. Gosto de organizar o Jantar de Natal do escritório, do amigo secreto, de escolher a prenda certa para a pessoa especial, de ser surpreendido com uma prenda inesperada, gosto da fazer a arvore e das luzes, gosto da mesa para ceia montada a preceito (recorda-me a minha mãe), do bacalhau na ceia, da roupa velha no dia seguinte, gosto de tudo isto. Ao mesmo tempo sei que aquilo que está na base disto tudo é bastante perverso, uma montagem elaborada misturando rituais seculares, pagãos, e, uma boa dose de propaganda consumista para criar um engodo que mantém milhares de pessoas presas a uma ideologia que tarda em acompanhar os tempos.

A mais complexa hipocrisia é o acto de solidariedade anual … lá fui eu no meu anual e pouco habitual entusiasmo militante a mobilizar o resto dos colegas para contribuírem, para participarem, para se entusiasmarem…a hipocrisia aqui claro que está em acharmos que a participarmos uma vez por ano no que quer que seja estamos a fazer alguma coisa. Mas fui lá militantemente engajado a distribuir a sopa solidária pela cidade, mas não voltei de coração cheio, muito pelo contrário, voltei abismado com aquilo que conseguimos todos dias ignorar para continuar contentes e felizes nos nossos pequenos mundos … bom acho que foi mais uma hipocrisia mas seguindo em frente.
Observando um pouco pelas redes sociais os posts, as fotos e os comentários percebi que não estou sozinho na hipocrisia, somos um montão deles, se nos uníssemos fazíamos um grande partido e olha que tínhamos com certeza mais “ideais” comuns que muitos partidos de verdade.
Uma observação mais cuidado e deu para ver que há vários tipos de hipócritas, talvez haja níveis de hipocrisia. Vou tentar brincar com algumas classificação:

O/A hipócrita Sem Noção - aquele que está numa ação de solidariedade para mostrar ao mundo como é solidário e é de tal forma desligado da realidade que consegue tirar selfies em momentos muito impróprios;
O/A hipócrita Oportunista -  bloguista/jornalista/politico/pessoa publica que participa  ou organiza a ação de solidariedade como forma de auto-promoção. Fácil identificar pela enxurrada de mediatismo que acompanha a ação e muito provavelmente, para que ninguém tenha duvidas coloca o próprio nome na campanha;
O hipócrita seguidor - este é de fácil descrição, foi porque os outros foram, se pudesse não ia mas ficava mal ficar de fora;
O hipócrita ausente - este é uma raça particularmente interessante, não vai, e não entende porque os outros vão, e em particular porque é que lhe fazem sentir mal de não ir.

Podia continuar por aí a fora a brincar um pouco com esta ideia mas não faz mais sentido a mensagem está clara. Não sei em qual dos casos me encaixo mas também sei que não me arrependo de ter-me hipocrisado este ano.
Não que traga nenhum sentimento de dever cumprido ou que ache ter feito alguma diferença quer na vida de quem precisa ou mesmo na vida das organizações. Senti no meu gesto um reconhecimento a uma organização (neste caso a Plataforma Makobo) que todos dias faz da solidariedade o seu modo de vida, faça chuva, faça frio, faça vento, sem câmaras e sem mediatismo estão lá  na lutam para minimizar o sofrimento dos outros e para suprimir onde o estado chega, e todos nos cidadãos também não.

Fica a determinação comigo mesmo para não esperar pelo próximo natal para dar a minha mão e apoiar esta ou outra ação social.

Nesta história de solidariedade natalicia não posso deixar de recordar-me de uma cena dos meus 15/16 anos com a Dona Alzira em Braga, cidade mais beata que já ví, desculpem-me os amigos bracarenses mas quando lá fui era assim. A Dona Alzira, uma católica ferrenha, era uma amiga dos meus pais e fiquei algumas vezes uns dias de férias em sua casa. Lembro perfeitamente um dia perto do Natal que a Dona Alzira puxa-me do braço para a acompanhar a fazer a sua Ação solidária de Natal. Saímos a pé à procura de um mendigo a quem ela faria o seu gesto solene e voltaria para casa com a sua consciência mais leve. Olha que foi um dia penoso, percorremos milhas à procura de um mendigo para a Dona Alzira e nada. Finalmente findas umas 3 horas de preambulo lá encontrou alguém num canto sentado e com um ar suficientemente desterrado para atingir as expectativas solidárias da Dona Alzira. Em surdina e que a Dona Alzina não nos oiça, acho que ele estava apenas com os copos.

Foi uma boa dose de hipocrisia e talvez onde a minha formação se tenha iniciado.

Um beijo para o vazio …