segunda-feira, 19 de março de 2018

O Buraco Municipal

Era uma vez Wahanha, a cidade capital de um país banhado pelo majestoso oceano Índico. A cidade, adornada de frondosas flores rubras, conhecia, como tantas outras no seu país, problemas sérios de corrupção que impactavam na vida diária dos seus cidadãos. Os problemas eram imensos, o lixo não era recolhido e amontoava-se por todo lado largando um cheiro nauseabundo, as estradas cheias de buracos mais pareciam buracos com pedaços de estrada, devida à falta de autocarros as pessoas eram transportadas em camiões de caixa aberta, como se tinham de se agarrar umas às outras para não cairem, estes eram conhecidos como “my-love”, sujeitos aos elementos climáticos, os esgotos corriam abertos pelas ruas, ou seja,um sem número de problemas. 

No dia em que a Wahanha completava 100 anos, a cidade amanheceu com um grande buraco em frente ao edifício do Conselho Municipal.

Sem se anunciar, lá estava ele, e era um buraco no qual não se via o fundo. Tentaram enviar sondas e fitas métricas mas não se conseguia encontrar um fim. Um jornalista, entendido em economias, dizia que o tamanho do buraco se equiparava ao deficit das contas do próprio município.

O primeiro incidente trágico aconteceu pouco depois da alvorada. Um bêbado da zona aproximou-se do dito cujo buraco, e inebrio que estava, desequilibrou-se e caiu para nunca mais ser visto.

O evento desencadeou uma onda de urgências e uma mobilização municipal. Não que um reles bêbado gerasse preocupação em tão fina agremiação, mas em tempos de eleição qualquer bêbado vale, quase tanto, como um munícipe autêntico. Reuniram a assembleia municipal para deliberar sobre o buraco, foi uma reunião curta e rapidamente se aperceberam que não havia fundos para tamanha reparação. 

Carlos Serrote, um conservacionista local, convidado para opinar sobre questões de salubridade, eis que pede a palavra e sugere que se usasse o buraco para despejar todo lixo municipal. O elenco gostou da ideia e decidiram-se por homenagear o buraco como um símbolo, venera-lo e apresenta-lo como uma obra emblemática do município, um buraco sem fundo onde caberia todo lixo da cidade e quiça, do país.

Montou-se um cortejo e um celebração de inauguração. Construíu-se um palanque sobre o buraco onde o nosso alcaide derramaria champanhe em louvores.

Ora quis o destino que o Alcaide, atafulhado em trajes oficiais, demasiado apertados para um corpo em expansão, atrapalhou-se e, no momento de partir a garrafa de espumante, escorregou e caiu cratera abaixo.

Para espanto de todos, mal o grito do presidente deixou de se ouvir, um valente tremor fechou o buraco, deixando em seu lugar uma amálgama de terras e alcatrões.

O dia terminou em grande burburinho, num misto de lutos e de teóricos avançando com explicações para o sucedido. Chegou-se à conclusão que o buraco não se satisfazia com pessoas comuns, vinha em busca de nobres, de políticos.

Um ano passado desde o estranho incidente, não é que a cidade desperta com o ressurgimento do buraco. Aquele mesmo que nos levara o alcaide no ano transacto.

Foi um fuzuê em Wahanha. Assim, logo pela manhã, foi convocada nova assembleia municipal, extraordinária e urgente, para decidirem quem se sacrificaria pela cidade.

Mais uma vez um certo jornalista, com artes de economista, fez contas ao diâmetro da cratera e declarou que esta tinha por centímetros o equivalente em milhões ao buraco orçamental do município.

Numa assembleia marcada por debates acérrimos, onde, por estranho que pareça, não consta ter adormecido nenhum dos membros, foram esgrimidos muitos argumentos e sugeridos vários critérios para seleccionar o sacrificado, de idades, alfabéticos, de votos, etc. sem que se chegasse a um consenso. Até que um jovem politico do agremiado, ainda demasiado novo e idealista para ter sido corrompido, se fez voluntário. Em nome do povo, em nome do município iria se apresentar para sacrifício e atirar-se ao buraco.

Foi uma cerimonia linda, com honras de banda militar, e altíssimos discursos de louvores e agradecimentos.

Tranquilamente o jovem deputado municipal caminhou o comprimento da tábua, prostrada sobre o buraco. Benzeu-se como seria de bom tom. E saltou. Sem gritos e sem choros.

Seguiu-se um longo minuto de silencio e expectativa. A cidade como que parada no tempo, nem mosca se ouvia e nem vento soprava. Milhares de ouvidos à escuta. Mas nada aconteceu.

Seguiu-se um uivo de frustração e agitação com acusações e empurrões. Nisto cinco deputados municipais, três da oposição, são pressionados contra a vedação que guardava o buraco, esta cede, e estes caem desamparados buraco abaixo.

Quase que não deu tempo de novo pânico porque com um tremor, acompanhado de um forte ruído, e já o buraco de novo se fechara.

Seguiram-se os habituais velórios, e os debates televisivos onde especialistas de diversas áreas procuravam argumentos e razões para o sucedido. A conclusão foi unanime. O buraco saciava-se de políticos corruptos.

Passados 10 meses desde o sucedido, Wahanha estava transfigurada. As ruas limpas, os munícipes felizes, os jardins arranjados, os buracos remendados, e os “my-love” substituídos por modernos sistemas de transporte.

Logo depois do ultimo dia da cidade, como que por magia, os cofres do município começaram a encher-se. Encheram-se de devoluções de fundos que se tinham extraviado por “engano”. De seguida parece que todo elenco municipal foi tomado por um sentido de dever, arregaçou as mangas e começou a trabalhar com afinco.

Desde lá, a cidade aos poucos transformou-se. Até mesmo o conservadorista local, Carlos Serrote, teve de migrar para outras paragens por lhe faltarem causas, o município assumira a responsabilidade das operações de limpeza das praias de Wahanha.

Neste dia outra cidade do país celebrava o seu aniversário. Trata-se da segunda maior cidade do país, construída em zonas baixas e exposta ao mesmo oceano, e, por lá, mesmo em frente ao Conselho Municipal apareceu do nada um buraco sem fundo. O elenco municipal tentou fugir da cidade, mas o povo caçou cada um, e obrigou a realizarem uma assembleia extraordinária para lidarem com o assunto. Parece que não está fácil a resolução, já que naquela terra são conhecidos por serem pouco confusos.


Um beijo para o vazio …

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