domingo, 4 de março de 2018

O Terceiro Estágio de Ross



Transpirava que nem um porco, de cabeça baixa e com a capulana sobre a cabeça sentia o ácido dos vapores a arderem entrando nas minhas narinas. O cheio indecifrável de tão misturado provocava-me nauseas.

- Aguenta meu filho! - incentivava Dona Maria. - Este bafo vai-te fazer bem! Vai-te tirar tudo!.

Onde me fui meter, como chegara aqui? Logo eu homem das ciências, ateu, descrente e agnóstico sujeitado a estes ritos. Mas assim era, o desespero levava-me a tal. Já antes passara por um Xá que queimara papiros com escritos de Alá, e, misturando esta cinza com algumas especiarias me entregara com indicações precisas e absurdas. Embora vexantes seguira à risca sem qualquer resultado.

Agora aqui estava bem no interior do bairro da Machava, nas traseiras de um quintal, nu debaixo de uma capulana cheirando vapores estanhos. Tudo na tentativa de recuperar o irrecuperável.

Um ser hediondo me levará ali, puxava-me de buraco em buraco e eu deixava-me ir incapaz de resistir. Parecia uma marionete sujeito a vontades alheias. Exímio em manipulação este ser jogava com o meu desespero.

Por momentos tive um lapso de lucidez e a memória refez o percurso que me levou ali. Atravessava nitidamente os cinco estágios de luto de Elisabeth Ross e estava neste momento em “Negociação" com o oculto tentando por tudo regressar a um passado recente. 

Todo desencadeado com a mensagem, o device errado, na mão errada, olhando a mensagem certa para a pessoa errada. Seguiu-se a “Negação”, era impossível aquilo estar a acontecer-me, vindo de onde? porque? devia haver algum engano.

A brutal, afiada, inesperada mas honesta confirmação motivou a passagem ao segundo estágio “Raiva”. Esta afirmou-se funda, fervente e ruidosa. Fez-se em berros, em nervos e em cacos. Em múltiplos planos negros de vinganças sangrentas e violentas não concretizadas. Levou o seu tempo a passar, demasiado tempo e demasiado desgaste, mas transitou.

Agora o  ser hediondo teimava em manter-me no terceiro estágio, com falsas esperanças e com falsas mágicas aproveitava a fraqueza de um ser destroçado que ansiava por passar ao estágio da depressão  e mantinha-o preso num estagio de perpetua negociação. Esgotado o espaço racional passara ao oculto, e neste saltava de fé em fé, de crença em crença, de crendice em crendice percorrendo um caminho que diluía a minha própria essência.

Quando a Dona Maria abriu a lamina de barbear, wilkinson, daquelas quadradas à antiga, bem em frente aos meus olhos senti um frio percorrer-me as costas.  

- O que vai faze com isso? - Questionei, enquanto a via mergulhar a lamina num liquido oleoso e de seguida numa qualquer mistura de pós e especiarias.

- Vou-lhe vacinar. Fechar teu corpo. Não vais sofrer mais. - Retorquiu a curandeira.

Continuei a seguir as ordens. Abri a boca e senti os pequenos golpes que a lamina trilhava na minha lingua. Senti a dor aguda do rasgar da carne e depois o ardor das especiarias. Não me mexi. Mantive-me quieto. Mas foi esta a gota que transbordara o copo. 

Chega a minha dignidade não está mais à venda. Que venha o proximo estágio e bem vinda sejas “Depressão”.


Um beijo para o vazio …

1 comentário: