segunda-feira, 19 de março de 2018

O Buraco Municipal

Era uma vez Wahanha, a cidade capital de um país banhado pelo majestoso oceano Índico. A cidade, adornada de frondosas flores rubras, conhecia, como tantas outras no seu país, problemas sérios de corrupção que impactavam na vida diária dos seus cidadãos. Os problemas eram imensos, o lixo não era recolhido e amontoava-se por todo lado largando um cheiro nauseabundo, as estradas cheias de buracos mais pareciam buracos com pedaços de estrada, devida à falta de autocarros as pessoas eram transportadas em camiões de caixa aberta, como se tinham de se agarrar umas às outras para não cairem, estes eram conhecidos como “my-love”, sujeitos aos elementos climáticos, os esgotos corriam abertos pelas ruas, ou seja,um sem número de problemas. 

No dia em que a Wahanha completava 100 anos, a cidade amanheceu com um grande buraco em frente ao edifício do Conselho Municipal.

Sem se anunciar, lá estava ele, e era um buraco no qual não se via o fundo. Tentaram enviar sondas e fitas métricas mas não se conseguia encontrar um fim. Um jornalista, entendido em economias, dizia que o tamanho do buraco se equiparava ao deficit das contas do próprio município.

O primeiro incidente trágico aconteceu pouco depois da alvorada. Um bêbado da zona aproximou-se do dito cujo buraco, e inebrio que estava, desequilibrou-se e caiu para nunca mais ser visto.

O evento desencadeou uma onda de urgências e uma mobilização municipal. Não que um reles bêbado gerasse preocupação em tão fina agremiação, mas em tempos de eleição qualquer bêbado vale, quase tanto, como um munícipe autêntico. Reuniram a assembleia municipal para deliberar sobre o buraco, foi uma reunião curta e rapidamente se aperceberam que não havia fundos para tamanha reparação. 

Carlos Serrote, um conservacionista local, convidado para opinar sobre questões de salubridade, eis que pede a palavra e sugere que se usasse o buraco para despejar todo lixo municipal. O elenco gostou da ideia e decidiram-se por homenagear o buraco como um símbolo, venera-lo e apresenta-lo como uma obra emblemática do município, um buraco sem fundo onde caberia todo lixo da cidade e quiça, do país.

Montou-se um cortejo e um celebração de inauguração. Construíu-se um palanque sobre o buraco onde o nosso alcaide derramaria champanhe em louvores.

Ora quis o destino que o Alcaide, atafulhado em trajes oficiais, demasiado apertados para um corpo em expansão, atrapalhou-se e, no momento de partir a garrafa de espumante, escorregou e caiu cratera abaixo.

Para espanto de todos, mal o grito do presidente deixou de se ouvir, um valente tremor fechou o buraco, deixando em seu lugar uma amálgama de terras e alcatrões.

O dia terminou em grande burburinho, num misto de lutos e de teóricos avançando com explicações para o sucedido. Chegou-se à conclusão que o buraco não se satisfazia com pessoas comuns, vinha em busca de nobres, de políticos.

Um ano passado desde o estranho incidente, não é que a cidade desperta com o ressurgimento do buraco. Aquele mesmo que nos levara o alcaide no ano transacto.

Foi um fuzuê em Wahanha. Assim, logo pela manhã, foi convocada nova assembleia municipal, extraordinária e urgente, para decidirem quem se sacrificaria pela cidade.

Mais uma vez um certo jornalista, com artes de economista, fez contas ao diâmetro da cratera e declarou que esta tinha por centímetros o equivalente em milhões ao buraco orçamental do município.

Numa assembleia marcada por debates acérrimos, onde, por estranho que pareça, não consta ter adormecido nenhum dos membros, foram esgrimidos muitos argumentos e sugeridos vários critérios para seleccionar o sacrificado, de idades, alfabéticos, de votos, etc. sem que se chegasse a um consenso. Até que um jovem politico do agremiado, ainda demasiado novo e idealista para ter sido corrompido, se fez voluntário. Em nome do povo, em nome do município iria se apresentar para sacrifício e atirar-se ao buraco.

Foi uma cerimonia linda, com honras de banda militar, e altíssimos discursos de louvores e agradecimentos.

Tranquilamente o jovem deputado municipal caminhou o comprimento da tábua, prostrada sobre o buraco. Benzeu-se como seria de bom tom. E saltou. Sem gritos e sem choros.

Seguiu-se um longo minuto de silencio e expectativa. A cidade como que parada no tempo, nem mosca se ouvia e nem vento soprava. Milhares de ouvidos à escuta. Mas nada aconteceu.

Seguiu-se um uivo de frustração e agitação com acusações e empurrões. Nisto cinco deputados municipais, três da oposição, são pressionados contra a vedação que guardava o buraco, esta cede, e estes caem desamparados buraco abaixo.

Quase que não deu tempo de novo pânico porque com um tremor, acompanhado de um forte ruído, e já o buraco de novo se fechara.

Seguiram-se os habituais velórios, e os debates televisivos onde especialistas de diversas áreas procuravam argumentos e razões para o sucedido. A conclusão foi unanime. O buraco saciava-se de políticos corruptos.

Passados 10 meses desde o sucedido, Wahanha estava transfigurada. As ruas limpas, os munícipes felizes, os jardins arranjados, os buracos remendados, e os “my-love” substituídos por modernos sistemas de transporte.

Logo depois do ultimo dia da cidade, como que por magia, os cofres do município começaram a encher-se. Encheram-se de devoluções de fundos que se tinham extraviado por “engano”. De seguida parece que todo elenco municipal foi tomado por um sentido de dever, arregaçou as mangas e começou a trabalhar com afinco.

Desde lá, a cidade aos poucos transformou-se. Até mesmo o conservadorista local, Carlos Serrote, teve de migrar para outras paragens por lhe faltarem causas, o município assumira a responsabilidade das operações de limpeza das praias de Wahanha.

Neste dia outra cidade do país celebrava o seu aniversário. Trata-se da segunda maior cidade do país, construída em zonas baixas e exposta ao mesmo oceano, e, por lá, mesmo em frente ao Conselho Municipal apareceu do nada um buraco sem fundo. O elenco municipal tentou fugir da cidade, mas o povo caçou cada um, e obrigou a realizarem uma assembleia extraordinária para lidarem com o assunto. Parece que não está fácil a resolução, já que naquela terra são conhecidos por serem pouco confusos.


Um beijo para o vazio …

segunda-feira, 12 de março de 2018

Zeca o irresistível - Parte 2


Encontrava-me despejado e de mochila às costas, atordoado pelos eventos recentes tentava definir o próximo passo. O meu
corpo ainda trémulo da intensidade das ultimas horas, repassava na cabeça os eventos e avaliava a situação: O que dizer aos meus pais? O que os tios iriam contar? Que motivo alegariam para me terem colocado na rua?

A casa que me albergara nas ultimas semanas ficava no sexto andar do PH9, o último do conjunto de prédios conhecidos como PHs situados no final da Avenida Keneth Kaunda. Lembrei-me do Edson Rodrigues, meu amigo de Quelimane que viera para Maputo comigo para, em conjuntoconcorrermos à UEM. Estava em casa do irmão mais velho no bairro de Laulane, com certeza que me dariam abrigo por um ou dois dias.

Atravesso a rua em direção à ATM do Millennium ao lado das bombas de combustível da rotunda da OMM. Eram perto das 12:00 e uma pequena fila se alinhava ao sol em frente à maquina.

Depois de me inteirar sobre o último da fila, perfilo-me aguardando pacientemente a minha vez.

Distraído a pensar com os meus botões sinto repentinamente um volume aproximar-se pelas costas e uma voz doce perguntando quem era o último. Viro-me de dedo em riste pronto para me identificar quando dou de caras com uns seios voluptuosos bem ao nível dos meus olhos. Dos seios meus olhos incautos elevam-se e fixam de seguida os olhos da moça.

Ficamos assim, paralisados uns segundos, enquanto mergulhava inteiro dentro desses olhos castanhos e profundos. Naquele instante ela era toda olhos e mamas e o mundo cessara de existir.

Meu transe foi interrompido estrondosamente por um murro do namorado. Ele estava ali, bem do lado dela, enfurecido com o desaforo e com a ameaça à sua honra.

Caí estatelado no chão e mal recuperei do susto vi o buraco onde me tinha metido. Ele era enorme, ainda maior que ela, parecia uma casa e bufava de raiva pronto a desfazer-me em pedaços.

Ela no entretanto escuda-me, atirando-se para cima de mim, ora gritando, ora afagando-me, ora tentando beijar-me, ora espalmando-me. Sufoco-me sem me conseguir libertar  até que o namorado a arrasta para o lado, abrindo espaço para desferir o segundo golpe.

Consigo rebolar a tempo de sentir o movimento do seu punho rasar a minha cara e embater com estrondo no chão. Lesto, recomponho-me e desato a correr a Keneth Kaunda abaixo. 

Imediatamente percebo que os dois personagens correm em perseguição, ela enfeitiçada e ele enraivecido. 

Consigo manter a minha corrida intensa e sem parar até à esquina da faculdade de direito, cerca de um quilometro. Nessa esquina, já a deitar osbofes pela boca, contorno a curva e sento-me no chão encostado ao muro da casa de esquina. Depois de respirar fundo algumas vezes, espreito para o caminho de onde vinha e vejo os dois vultos, ao longe, mas caminhando determinados em minha direção. Mesmo ao longe consigo sentir a intensidade do seu olhar.

Avalio a minha situação. Ou continuo pela Keneth Kaunda ou sigo por esta rua até à Avenida do Zimbábwe. Nisto olho em direção da Avenida do Zimbábwe e deparo-me com três silhuetas, três mulheres da noite que estendiam seu turno na esperança de aproveitar o feriado. 

Noto primeiro as meias rendadas e as saias curtasdepois os tops de leatherShitmais uma vez não consegui parar a tempo e mal cruzo olhares. De imediato o trio começava a deslocar-se em minha direção, com olhos esgazeados, predadores cheios de intenções.

Não me resta hipótese senão continuar em fuga pela Keneth Kaunda abaixo. Enquanto corria, o meu quinteto de perseguidores junta-se num pelotão ruidoso, caricato, determinado em meu encalço pela rua e sem mostrar sinais de cansaço.

Quase a chegar à esquina da Kim Il Sung vejo um chapa parado e grito para que espere. É a minha salvação. O carro, que já arrancava, se imobiliza logo de seguida e abre a porta dos passageiros. Ofegante salto para dentro e incentivo com urgência o condutor. - Vai, vai, arranca, vamos!

O cobrador fecha a porta e o chapa arranca com um chiar de pneus. Sinto-me aliviado, vejo no retrovisor os perseguidores a esbracejarem a perderem-se na distância. Baixo a cabeça e largo um suspiro de alívio. Nisto o cobrador afirma que são 12 Meticais. Recordo-me que não cheguei a levantar o dinheiro. Levanto a cabeça e olho o cobrador. Um jovem com uns olhos claros e meigos … oh não …

Um beijo para o vazio …

domingo, 4 de março de 2018

O Terceiro Estágio de Ross



Transpirava que nem um porco, de cabeça baixa e com a capulana sobre a cabeça sentia o ácido dos vapores a arderem entrando nas minhas narinas. O cheio indecifrável de tão misturado provocava-me nauseas.

- Aguenta meu filho! - incentivava Dona Maria. - Este bafo vai-te fazer bem! Vai-te tirar tudo!.

Onde me fui meter, como chegara aqui? Logo eu homem das ciências, ateu, descrente e agnóstico sujeitado a estes ritos. Mas assim era, o desespero levava-me a tal. Já antes passara por um Xá que queimara papiros com escritos de Alá, e, misturando esta cinza com algumas especiarias me entregara com indicações precisas e absurdas. Embora vexantes seguira à risca sem qualquer resultado.

Agora aqui estava bem no interior do bairro da Machava, nas traseiras de um quintal, nu debaixo de uma capulana cheirando vapores estanhos. Tudo na tentativa de recuperar o irrecuperável.

Um ser hediondo me levará ali, puxava-me de buraco em buraco e eu deixava-me ir incapaz de resistir. Parecia uma marionete sujeito a vontades alheias. Exímio em manipulação este ser jogava com o meu desespero.

Por momentos tive um lapso de lucidez e a memória refez o percurso que me levou ali. Atravessava nitidamente os cinco estágios de luto de Elisabeth Ross e estava neste momento em “Negociação" com o oculto tentando por tudo regressar a um passado recente. 

Todo desencadeado com a mensagem, o device errado, na mão errada, olhando a mensagem certa para a pessoa errada. Seguiu-se a “Negação”, era impossível aquilo estar a acontecer-me, vindo de onde? porque? devia haver algum engano.

A brutal, afiada, inesperada mas honesta confirmação motivou a passagem ao segundo estágio “Raiva”. Esta afirmou-se funda, fervente e ruidosa. Fez-se em berros, em nervos e em cacos. Em múltiplos planos negros de vinganças sangrentas e violentas não concretizadas. Levou o seu tempo a passar, demasiado tempo e demasiado desgaste, mas transitou.

Agora o  ser hediondo teimava em manter-me no terceiro estágio, com falsas esperanças e com falsas mágicas aproveitava a fraqueza de um ser destroçado que ansiava por passar ao estágio da depressão  e mantinha-o preso num estagio de perpetua negociação. Esgotado o espaço racional passara ao oculto, e neste saltava de fé em fé, de crença em crença, de crendice em crendice percorrendo um caminho que diluía a minha própria essência.

Quando a Dona Maria abriu a lamina de barbear, wilkinson, daquelas quadradas à antiga, bem em frente aos meus olhos senti um frio percorrer-me as costas.  

- O que vai faze com isso? - Questionei, enquanto a via mergulhar a lamina num liquido oleoso e de seguida numa qualquer mistura de pós e especiarias.

- Vou-lhe vacinar. Fechar teu corpo. Não vais sofrer mais. - Retorquiu a curandeira.

Continuei a seguir as ordens. Abri a boca e senti os pequenos golpes que a lamina trilhava na minha lingua. Senti a dor aguda do rasgar da carne e depois o ardor das especiarias. Não me mexi. Mantive-me quieto. Mas foi esta a gota que transbordara o copo. 

Chega a minha dignidade não está mais à venda. Que venha o proximo estágio e bem vinda sejas “Depressão”.


Um beijo para o vazio …

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Oito

Conduzia o meu carro diligentemente pela 24 de Julho e pensava para comigo: “Hoje vai ser um dia mesmo bom”.

Tudo assim indicava, começando pela data 08-09-2016. Não só por ser o meu aniversário mas porque esperava por este dia já há 9 anos. Passo a explicar:
 Aos poucos fui-me apercebendo que o destino falava comigo por números e nenhum tinha mais encanto que o número do dia do meu nascimento que tinha marcado para sempre a minha sorte, o número oito.

Este número foi-se manifestando nos momentos mais importantes para mim, mas, mais que isso, foi marcando a minha sorte no dia a dia. Pode parecer meio doentio mas vamos às evidencias.
  1. Minha filha nasceu a 02.02.2002, ora  0 + 2 + 0 + 2 + 2 + 0 + 0 + 2 = 8;
  2. Conheci o meu parceiro a 02.01.05, ora 0 + 2 + 0 + 1 + 0 + 5 = 8; 
  3. Comecei no meu emprego actual a 23.12, ora 2 + 3 + 1 + 2 = 8.
Fui percebendo aos poucos que quanto mais dígitos de um evento usava para chegar ao fatídico número oito, mais profundo e relevante este evento se mostrava. Nos 3 casos atrás o nascimento da minha filha marcava o oito na plenitude da sua dimensão com 8 dígitos a somarem o 8, no terceiro caso chegava ao 8 apenas com a soma de 4 dígitos, do dia e mês.

Enquanto me perdia nestes pensamentos, reparei na matricula do carro que me precedia parado do semáforo da Av. 24 de Julho com a Vladimir Lenine, um Kia Picanto vermelho, ACK 035 MP, ora 0 + 3 + 5 = 8. Esboço um sorriso por sentir mais esta nota do destino em como o dia seria mesmo importante.

Mas descobri mais regras nesta minha “loucura”, por exemplo o número nove (9) podia muitas vezes ser descartado das contas, funcionava como uma espécie de elemento neutro. Por exemplo, a matricula do meu pequeno Nissan Verissa cinzento era MMJ 980 MP, neste caso a lógica aplicar-se-ia em duas partes ( 9 + 8 ) + 0, na primeira parte  9 + 8 = 17 ou seja,  1 + 7 = 8, e dai poderia ignorar o 9 ficando apenas com 8 + 0 = 8.

Assim foi com o meu nascimento (08 + 09 + 1971) = 8 + 9 + (9) = 8 - um dia auspicioso e que se repetia a periodicamente na mesma forma -  (08 + 09 + 1980), (08 + 09 + 1989), (08 + 09 + 2007). Foi neste último que me apercebi do sentido de oportunidade que o destino me reservava para este dia. 
Por ironia só me apercebi tarde de mais quando, ignorando todos sinais, não comprei o bilhete de lotaria que esteve na minha mão. Eram 08 horas e 08 minutos quando devolvi a calota (00990008) ao vendedor e, mal ele se afastou, percebi o erro da minha acção. Foram precisos 8 dias para confirmar na edição 908 do jornal notícias que o número vencedor da lotaria especial com um premio de 8 milhões de Meticais saíra à calota que esteve nas minhas mãos.

Nesse dia tudo ficou mais claro e percebi como funcionava o intricado emaranhado que o destino colocara para o meu caminho, percebi que tudo em minha volta girava à volta deste bem afortunado número. Percebi ainda que tinha de aguardar pacientemente mais 9 anos pelo dia de hoje para ter a minha próxima oportunidade.

Entretanto estacionava já o carro em frente ao meu destino, o número 44 da Vladimir Lenine, (4 + 4=8) um prédio novo como estes que parecem crescer como cogumelos pela cidade de maputo. O meu encontro estava marcado para as 08:00 no nono andar (9 elemento neutro não se esqueçam), na sala número 7. 

- Sala Sete? – Perguntara eu à telefonista, - tem certeza que é sala sete mesmo, não será sala oito? - pedi e insisti que ela relesse os seus papeis; alguma coisa tinha de estar mal. Mas não. Ela insistiu que o Director Cumbana marcara o encontro na sala número sete e que não tinha mais informações sobre o motivo do encontro e que não, não podia alterar a sala.

Neste momento olhava o carro estacionado em frente ao espaço que vagou como que por magia mesmo em frente ao edifício e la estava a matricula ACJ 223 MP. Sete de novo? Larguei um audível desalento tão murmurado que não eu próprio percebi o que dissera. 

Daí para a frente foi só a piorar. O guarda do prédio ostentava distintamente uma camisa com um esbatido "Channel Nr 7"  no peito. De novo resmunguei enquanto me anunciei e me dirigi ao elevador.
Ao entrar no elevador estavam seis pessoas perfiladas já dentro, comigo éramos 7. Olhei para o painel dos botões do elevador desesperadamente em busca de um número 8 que me pudesse acalmar. Pisei o botão com determinação mas este se recusou em acender. Voltei a pressionar e nada.

  • Caro Senhor, o elevador não para no oitavo, está avariado. Só pode sair no sétimo. - disse uma das almas que de tão baralhado já não conseguia distinguir.
  • Obrigado prefiro sair no nono. - Afirmei já em desespero.
  • Também não funciona - disseram as seis vozes em coro e em uníssono. Só funciona o sétimo.

Meu coração disparou a-ritmado em pulsações galopantes. Já começara a transpirar. Pensei em sair e subir a pé mas não me sobrava tempo, não me restava opção.

Durante a aparente interminável subida, subia também a minha tensão, o meu calor, a minha respiração tornara-se ofegante. Sentia-me sem forças quase a desmaiar.

Lá chegamos ao sétimo andar, depois de atropelado pela pressa dos indistintos companheiros de viagem, arrastei-me escada acima. Tentei concentrar-me a contar os degraus. Eram lances de 7 degraus cada. Cheguei ao oitavo andar aguardando que este estivesse anunciado por um grande 8 na parece, mas o lugar do número encontrava-se vazio.

Depois de mais uma penosa caminhada pelo corredor lá dei de caras com o a sala número 7. Gloriosamente anunciada por um reluzente e dourado número.
Minhas mãos tremiam enquanto aproximava a mão da maçaneta. Sentia o coração fora do peito. Estava todo eu molhado em suor. De repente senti-me cair e tudo escureceu.

  • “Que lástima!” comentava o Dr. Cumbana para a sua assistente. “Morreu assim, de um momento para o outro. Ataque cardíaco. Mesmo à porta de receber Oito milhões de dólares de herança.”.
Enquanto se afastavam do edifício, dois maqueiros colocavam o corpo na ambulância com a matrícula AMD 800 MP.


Um beijo para o vazio …

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Zeca o irresistível

Nasci assim meio estranho sem saber que o era. Chamaram-me de Zeca, mas fui marcado de muitos outros nomes que pouco diziam de mim, mais falavam daquilo que os outros achavam do que daquilo que eu era e sentia. Não tenho nome para mim até porque nunca me achei mais diferente do que a diferença que todos temos uns dos outros.

Tinha um dom, ou uma maldição, não sei bem, melhor dizer que tinha uma habilidade, era irresistível. Não se trata de uma vaidade não, até porque não era particularmente bonito, nem sensual, era simplesmente irresistível. Um dom estranho e diria sobrenatural pois bastava cruzar os olhos com alguém “interessante"e zás, estava preso por uma teia invisível e destinado a cortejar e insistir até que eu consuma inteiramente a sua alma e realizasse os desejos que este nem mesmo conhecia.

Diria que os meus olhos eram a própria seta do cupido, e quando disparavam, não importava género, idade, raça, religião, o fim seria sempre o mesmo.

Recordo vivamente a primeira vez que se manifestara o meu super-poder, tinha vindo a Maputo para prestar exames na UEM e me alojara em casa de um tio, irmão mais novo do meu pai. O meu tio era um jovem formado e casado de fresco com Helena uma mulher deslumbrante que meus olhos temiam em fitar. Mas não foi Helena não a primeira vitima.

Certo dia, depois de mais uma longa noite de estudo despertei anormalmente tarde e, como habitual desloquei-me ao banheiro para a minha higiene matinal, não estanhando a porta fechada, que pela hora me achava sozinho, irrompi banheiro a dentro sem noção que este estaria ocupado. Dei de caras, ou antes de corpo com o meu tio completamente nu saindo do chuveiro. 

O corpo escultural e sarado, molhado, a sua pujança escancarada despertou a minha habilidade e quando meus olhos se uniram aos seus o destino de primeira vitima estava marcado.

Quando me apercebi do que se passará fechei imediatamente a porta e fugi para o quarto não ainda consciente daquilo que despertara.

Nem cinco minutos passaram e a primeira vitima bateu de leve à minha porta e com um tom de voz de uma suavidade que nunca ouvira perguntou. - Está tudo bem meu sobrinho?

Fiquei gelado, em pânico, as palavras não me saiam da boca. - "Posso entrar querido?" 

“Querido”, como assim, nunca antes ouvira tal palavra. Apressei-me a trancar a porta e repliquei. - Tio não me sinto bem, acho que estou com febres, vou ficar a descansar mais um pouco.

Nesse primeiro dia a desculpa funcionou. E os dias seguintes passei trancado no quarto tentando deixar o fogo que ateara amainar. Mas a cada dia, do outro lado da porta, os apelos, as suplicas cresciam. De pequenas insinuações transformaram-se em grandes e laudas declarações. Eu fechado em silencio sem saber bem o que fazer.

As suplicas iniciavam assim que Helena saía para o serviço e duravam um tempo indeterminado mas crescente. Por outro lado minha tia se preocupava e reclamava com meu pai que eu estaria deprimido e que passava os dias no quarto, nem para comer saia. Já nem as desculpas de que estudava pareciam tranquiliza-la.

Num infame dia dos heróis moçambicanos tudo de desfechou, incauto abandonei meu cárcere sem saber que era feriado. Minha tia tinha saído, e ao entrar no corredor la estava ele feito um caçador dissimulado na mata aguardando a sua presa. Assim que os olhos se voltaram a cruzar foi como se o mundo em volta sumisse, e uma força magnética incontrolável puxasse os dois corpos para um turbilhão de sensações e de paixões.

A confirmação deste meu super-poder veio pouco depois. Ainda imbuídos no leito em plena paixão e a porta do quarto se abre revelando a figura igualmente deslumbrante de minha tia. Vinha da sua corrida com roupas de lycra que deixavam realçado a sua figura perfeita, de curvas que tinham de ser desenhadas a compasso.

De uma surpresa inicial meus olhos, depois de absorverem a sua figura em luxuria, encontraram seus olhos e viram estes transformarem-se de olhares irados em olhares de desejo quase instantaneamente.

O que se seguiu é indescritível, uma amalgama dos 3 corpos fundidos num ser único e insaciável, liberto de pudores e de tabus em delírio de prazer.

Foi assim a minha introdução ao mundo dos adultos, estabelecendo uma fasquia bem alta. Percebi de seguida o lado negro do meu poder. Consumado o desejo o alvo deste passava do amor profundo à rejeição, como que  envergonhado por se desvendarem desejos que desconhecera.


Nem meia hora passara e estava eu de mochila às costas na rua, proscrito e procurando a próxima vitima.


Um beijo para o vazio ...

sábado, 30 de abril de 2016

Helena

Caminhava sem destino percorrendo a marginal da minha cidade. Fitava intensivamente os olhos de cada pessoa com que me cruzava.
No breve instante em que se tocavam os olhares mergulhava na sua alma e procurava algo. Procurava uma evidencia de humanidade. Procurava uma resposta sem saber qual era a pergunta.
Invariavelmente sentia-me eu próprio invadido e escrutinado. Sentia que revelava muito mais do que descobria. Revelava coisas que eu próprio desconhecia.
A incapacidade de esconder a minha essência ardia em meu ser numa agonia incontrolável, e, invariavelmente desviava o olhar em busca de alivio. Mas como um drogado em busca da próxima dose procurava imediatamente o proximo olhar.
No meio desta luta insana com a minha falta de razão descobri Helena. No seu olhar li tudo, naquele instante revelei nada. Senti uma pureza divida, um humanismo para lá da própria humanidade, dancei com o destino, morri e renasci.
Desta vez não consegui desviar o olhar, este, como que magnetizado, ficou preso no olhar dela, e o olhar dela preso estava no meu olhar.
Estendi a mão e esbocei um sorriso tímido. Todos gestos medidos e lentos com medo que o  vinculo, que me parecia ter tanto de forte como de efêmero, se quebrasse.
- “Helena” disse ela com uma voz transbordando em ternura.
Parecia um sonho. Talvez fosse mesmo um sonho, mas nesse caso preferia não despertar. Preferia ficar ali e agarrar-me àquele momento até que meu corpo não resistisse mais, e, definhasse sem acordar.
Tentei responder, mas do meu próprio nome não me recordava. Procurava na memória, sem nunca desviar o olhar, e não me conseguia lembrar. A minha resposta tardava e quanto mais demorava mais percebia que o momento chegava ao fim. Não tinha palavras, a minha boca permanecia fechada. O desespero tomava conta de mim.
Na minha incapacidade algo estranho acontecia a Helena. Ela desvanecia. Esbatia-se. O seu olhar passou da serenidade para o desespero. O seu desespero se juntava ao meu, incapaz de parar o que se passava em frente a mim.
E assim deixou de ser, e, com o seu desaparecer, também eu desapareci. Também eu deixei de ser. Fiquei vazio.
Relutante e pesaroso retomei o meu caminho. Olhando no chão. Sem coragem de vasculhar mais almas, na certeza que nada mais restava em mim.

Um beijo para o vazio

segunda-feira, 7 de março de 2016

O Caril de caranguejo da Dona Olga (Parte 2)


Perto das 13:00 começaram a chegar os convidados. A primeira a chegar, cheia de entusiasmo e preparada para não perder uma pitada dos acontecimentos lá estava a Dona Carminda, excessivamente vestida e maquiada para um evento tão pouco formal. Trazia o seu famoso bolo de mármore que, segundo ela, já tinha encantado a mesa de certo sultão.

Não demorou muito para que os 14 se juntassem em torno da mesa de pedra. O espaço, nas traseiras do quintal e adjacente à sala de visitas ficava nesta altura do ano como que coberto por um manto branco de uma buganvília exuberante, a mesa de pedra era rodeada por um pequeno muro que servia também de assento. Algumas pesadas cadeiras de ferro com coloridas almofadas  serviam os glúteos mais sensíveis. 

A mesa estava devidamente recheada de entradas e petiscos. Todos servidos de bebida foram conversando em alegre cavaqueira antecipando a entrada triunfal da panela do caranguejo.

O espetáculo não se fez rogado, o cortejo vinha da cozinha por um caminho lateral, em frente a pequena Dona Olga de sorriso aberto e acolhedor, seguida do Xavier com a tão esperada panela, e com o Julio carregando a panela do arroz. Faltou à solenidade do cenário um rufar de tambores enquanto as panelas eram depositadas no lugar de honra.

O Sr. Jorge adiantou-se dando o exemplo e serviu-se. Primeiro do arroz, que de seguida foi generosamente regado com molho da panela do caril, com a carne e com alguns corpos e patas de caranguejo ao lado. Um indispensável pedaço de pão para aproveitar o molho. Para o Sr. Jorge o pedaço de pão tinha de ser barrado com bastante manteiga.

Entretanto já tinha sido adicionado à mesa uma tábua de madeira e um pequeno martelo para ajudar a partir a dura casca das tenazes do caranguejo.

As horas seguintes foram de degustação, conversa e muito álcool. Os colegas do ministério não tiveram dificuldade de integrar-se e foram paulatinamente ficando inebriados tal qual o resto dos convidados.

A certa altura o Manuel já incapaz de discernir quem estava em volta: “Arlindo fui lá nas massagens das chinas na Mau-tse-tung. Sabes que no final fui atacado pela moça? Não sei o que pensam aquelas. Ainda mais foi aquela tal Mei Ling que recomendaste. Acho que desaguentou com o meu charme … hehehehe.”

A esta altura o Sr. Arlindo não sabia onde se meter, a expressão da esposa mostrava um tormento de quem tentava conter um ataque de fúria. O marido falava com muito apreço do sitio e não dispensava as duas visitas semanais para se livrar o "stress do trabalho”.

“Parece que está na nossa hora. Vamos Arlindo!”. Disse a ofendida esposa com uma assertividade que fez saltar o pobre Arlindo do assento. O Manuel nem se atreveu a mexer-se e percebeu pelo olhar do chefe que o tema não ficaria por ali.

Com grande sobriedade a Dona Olga agradeceu a visita e acompanhou os convidados a porta. Aproveitou para expressar a sua simpatia pela situação da convidada pressionando firmemente sobre o ombro enquanto se despedia. “Tenha calma que tudo se resolve.”.

Ao voltarem a mesa os restantes convidados rebolavam-se de riso. A Dona Olga sobrepôs ao alarido um sonoro “Quem vai querer sobremesa?” cujo tom matou a galhofa e devolveu a todos o pachorrento ritmo de um domingo a tarde. Todos menos a Dona Carminda que se retorcia num cantinho incapaz de conter a agitação.

Levantou-se quase a correr e despediu-se sem parar “Tenho de ir, preciso fazer uns telefonemas!!!”. Parecia com medo que os detalhes da cena se esfumassem antes de passar a palavra.